terça-feira, 29 de março de 2005



vê aquilo deitado entre suas roupas, uma pequena trouxinha de pêlos adormecida sobre sua cama. aproxima-se da coisa, sente vontade de ver mais perto, ainda mais perto. calcula que a cabeça do errante equivale a um terço de sua mão. aperta de leve, fazendo aumentar a pressão gradualmente, brincando de testar o contraste da sua força com a fragilidade do bicho.
o gato morde-lhe o dedo. 'ora, veja só como esse maldito se vinga! e finca-me os dentinhos ainda de olhos fechados'.
nu, deitado na cama, põe-se ainda a observar a pequena criaturinha dócil, que dorme. o que faria agora? patinhas rosadas. macias. deliciosas patinhas rosadas e macias como miolo de pão. com a ponta de dois dedos aperta a mão do bichano, simulando um cumprimento. faz do aperto de mãos uma seqüência repetida de vai-e-vens frenéticos. ri-se. aperta com mais intensidade. ri da ridicularidade do seu ser. ri por importunar o pobre gatuno que possui o desvalor das coisas pequenas, das coisas que estão no chão, que não fazem parte da engrenagens que movem sua vida. o que fazia ali? nu, deitado de bruços, desafiando a atenção de uma pequena insignificância que caminha pela casa, que vive no desnecessário; esquecendo dos minutos que se esvaiam na brincadeira tola e solitária. solitária, veja. nem mesmo o animal dá-se conta, dorme. o mundo torna-se aquele momento, aquele instante concentrado nas pequenas partes da criaturinha em seu estado desatento e imóvel. e nada parece mais importante do que esse ínfimo duelo inconsciente.

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quarta-feira, 23 de março de 2005

Pedro é legal. nenhuma ponta cortante: é redondez polida, desaguda.
pega o copo com medida delicadeza, leva a boca, engole satisfeito, sorri demasiado educado - não pode ser, ninguém pode ser assim. ser tão redondo, polido -, oferece bombons e mostra os limpos dentes a todo gesto de outrem que se agrada aos sorrisos.
demasiado educado.
estudo movimentos, passos em falso. há deslizes, em algum tempo em que não o vêem. e eu procuro. há de haver - se a frase permitir - e hei de vê-lo tropeçar, hei de sorrir à isso sem qualquer polidez, de querer alargar meu corpo ao abraço, pois seremos como somos. como sou. estaremos próximos, seremos meu desejo, carne perecível. mais homens, menos redondezas. e hei de vê-lo se perder. de tê-lo meu. em todo desejo de cerrar estes sorrisos, de cair em corpos duros, de virar líquido e pura sujeira.
aliso anseios desesperados
ele.
eu simulo.
o corpo limita.
eu quero bizarrias
se elas são comuns à todos.
ninguém é tão limpo
tão invejável,
criterioso,
macio,
ele.

onde estão seus gritos, suas dores? nas melindres estúpidas dos que não vivem?
saudades do tempo em que em todo o homem havia um ser humano. um animal desejoso. do tempo em que havia a sua ausência em mim.

segunda-feira, 14 de março de 2005


diálogo-sindético-adversativo


- mas não, só quero dormir
- mas eu não disse que não devias dormir
- mas eu não quero saber o que dizes
- mas mesmo assim te digo. querendo ou não
- mas pensas que te escutarei?
- mas quem sabe escutas, quem sabe tenho jeito de me fazer ouvir
- mas não há como, sou oposto a ti, ao que queres. desqueira que eu ouça, então
- mas aí me calo
- mas é lógico. aí que está o motivo de tudo que existe aqui