sexta-feira, 23 de março de 1990

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"cortar as unhas dos pés pra
quem tem uma barriga
é qualquer
coisa de apoplético espumante e caresmim"
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Dois kibes. O copo de café com um dedo de leite, no vidro engordurado. Coisas de botequim e rodoviárias como essa - ou de tantas bocas que entram e saem do lugar, procurando por um desses cheios de café. Bocas em corpos cansados, de horas e ônibus - a fome e um gorgolejo repugnante no líquido leitoso e escuro.

11:18

Com os pés apoiados na cadeira em frente, cruza as pernas esticadas e reclina-se confortável no acento vermelho, que data de 70. Azulejos de flores magras forram e se apagam em todos esses anos de decoração despercebida.

Agora braços apoiados na saliente e rígida barriga, a maionese esparramando-se majestosa na mistura com a coisa que cheira à carne, enquanto os dentes se afundam na comida. Mais maionese. Grandes bocadas que mastigam e reviram esses nacos de qualquer coisa. Olhos no vidro, o vagar confuso dos olhos. A grande janela fragmentando o movimento disperso das vidas que chegam. Que vêm e que deixam, - trapos, mães, saias e ramelas de pequenas vidas amarelas - no carregar apressado dos que trafegam esquecidos.

sexta-feira, 9 de março de 1990


Pôrto Alegre, 19 de abril de 1974

Querida vó Nina

Antes de tudo, um longo e interminável abraço. Agora conversemos: pouco - porque escrevo-lhe da sala de aula, entre muitos afazeres, antes de bater o sinal.

Há quanto tempo eu lhe devo uma carta! Mas que quer? Arranjos de casa, revisões de provas, episódios de sentimento, preguiças de inverno - mais tirânicas neste estado frio - têm me absorvido aquele pouco tempo que disponho no dia.

A viagem fez-me bem: pois faziam quase 2 meses que eu não sentia a frescura do bom, do amável espírito de que a senhora tem o segredo de possuir! Aos 35 - 35 ou 45? - com uma saúde de ferro, um espírito de lume, uma bondade de anil - que diabo a senhora pode querer mais? e eu, que aos 15 -- digamos que sejam 16 -- fico adoentado por qualquer resfriadozinho e... Veio o professor interromper-me e assim passo a outro assunto.

De mim, que quer que lhe diga? Estou tão só que a conversação ordinária é com o meu gato; estou tão imbecil que leio Paul de Kock! (É a verdade exata)

Ai, como tenho saudades desses pagos tão distantes. Constantemente penso nas belas estradas cercadas de uva e milho, no bom vinho verde que eleva a alma, nos arvoredos cheios de pássaros...

Mas o que não estou é contente com esta terra estúpida para onde vim. Oh! a grosseira gente! Oh, o seu trânsito desumano. Ah o terrível preço de uma camisa! Ah, o mau vinho! E as pintadas mulheres! Detesto esta cidade milionária, sóbria e ruidosa. Quem me dera estar aí na rua 14 de Julho.

Os meus respeitos à senhora, e um bom e grande abraço ao vô Gilberto do seu neto,

João

* Quando vierem tragam as fitas para ouvirmos, principalmente aquela do relógio (dos boleros)